Crônica de um cotidiano sem IA

Entrei para faculdade de Comunicação Social da UFRGS, carinhosamente apelidada de Fabico, em 1996. Considerando que o vestibular foi prestado em 1995 pode-se dizer que, sim, isso faz 30 anos. Era um tempo interessante. Não vou dizer que em tudo era melhor, mas em algumas coisas, era sim. E nesse estranho artigo meio crônica quero contar um pouco sobre essa experiência.
As pessoas por exemplo: elas usavam cores. Os carros também. Não necessariamente combinando. Embora, sei, as fotos da época tem hoje meio assim uns tons sépia. Ou talvez seja como ficaram em minha memória. É fato que se podia perceber menos “estilo” no vestir das pessoas. Ainda mais da faculdade. Não era de todo incomum encontrar alguém com uma camiseta de brinde ou um colega meio escabelado e com uma camisa xadrez que poderia ter sido usada na festa junina. Amassada. E velha.
Acho que talvez tivéssemos orgulho de nossa falta de noção estética ou vaidade. Era meio chique contar de onde se veio caminhando e quantos ônibus havíamos pegado, especialmente se a gente vinha do trabalho. Isso ajuda a explicar por que tantos de nós éramos muito magros ou porque não pensávamos muito em comida. Certamente ninguém carregava água na mão, só talvez um saco de bergamotas para compartilhar no intervalo. Até porque, com uma moeda de um real era possível comprar um cachorro-quente em frente à faculdade, cheio de recheios absurdos, como batata palha à vontade e ervilhas. No tiozinho que todo mundo sabia o nome, mas que agora não me recordo mais. Ou com R$1,30 era possível comer no bandejão do RU logo em frente (com ki-suco!) e até pegar o dia do sopão. Onde tomávamos água? Não lembro, mas acho que era no bebedor do corredor, tomando cuidado para não encostar a boca. (Eu pelo menos, achava meio nojento. Mas tomava igual).
Fato é que naquele tempo tínhamos muitas rodas de conversa. Não era nenhum tipo de workshop marcado ou evento especial. Elas aconteciam na grama da faculdade, nas cadeiras do bar, nos fundos da sinuca, na aglomeração ao redor das salas. E serviam para as pessoas falarem qualquer coisa. De vez em quando, até rolavam umas brigas por política, discordância histórica, opinião sobre filmes (Woody Allen era um “divisor de gente” e sempre tinha alguém que sabia de cor as falas de Blade Runner) ou simplesmente futebol. Sim, já tínhamos uns que falavam mais que outros. Mas geralmente a gente debochava dessas pessoas, porque como disse era meio esquisito ser vaidoso. Aliás, lembro de um cara que chegava todo arrumadinho e chegou ao cúmulo de um dia vir com um moletom cobrindo os ombros, ao estilo magnata no campus de golfe. Dali em diante quando ele se aproximava alguém começava a cantar a música da abertura da Malhação, do Lulu Santos. Aquela de “ainda vai levar um tempo, para curar o que feriu por dentro”. É que a série era símbolo de boyzinho e patricinha porque passava de tarde, horário que só quem não trabalha assiste. E a gente se deliciava em ser contracultura. A gente adorava se sentir pobre e original. E sim, a gente fazia bullying, que na época chamava implicar, com quem gostava de se fazer de rico. Ou trabalhava na rede de TV local. Secretamente a gente desejava trabalhar lá. Mas sabíamos que éramos feios e que nosso melhor talento seria saber escrever. Se tivéssemos sorte. A verdade é que a gente não se levava muito a sério. E fazia graça de quem se fizesse.
Talvez por isso conversássemos tanto. Adorávamos ter com quem trocar sobre as ideias que os livros nos traziam. Porque para saber escrever, todos diziam, era preciso saber ler. E ler era algo obrigatório para ser um jornalista, tanto quanto escrever: 3500 caracteres por dia, em página tabloide, formato só aqui do Sul (fácil chegar no dobro disso em jornais Standard do centro do país, como Folha ou Estadão), coisa que cheguei a escrever em jornal diário. Por isso, que orgulho tínhamos em ler qualquer coisa! Todo mundo de vez em quando se vangloriava de comprar dois ou três livros por 10 reais, coisa que achávamos em sebo. Eu não gostava porque sempre tive alergia a esses livros muito velhos e preferia pegar livros da biblioteca mesmo. Ok, mas já estou divagando aqui.
Bom então aí dá para ver que as tais rodas de conversa certamente não mereciam um cartaz digital com data e local ou imagem projetada pelo Canva. Eram algo que acontecia. Aliás, claro que existia nada nem parecido com Canva (os mais descolados sabiam usar Photoshop ou Corel Draw). Nem whatsapp ou internet, muito menos Google. Celular era algo muito caro, que os poucos que tinham só usavam para mensagens SMS. Os mais abonados tinham pagers – mas era mais comum achar isso no pessoal do campus da Medicina ou residentes do Clínicas, que ficava ali na frente. Bom, havia a internet da Biblioteca, mas tinha que pegar um dos três computadores de lá e só servia para descobrir um outro estudante de faculdade federal, em alguma outra biblioteca, e conversar com ele ou ela em uma tela verde, que só servia para escrever e não tinha imagens. O sistema chamava vórtex. E era nosso primeiro e-mail também. Mas quase ninguém usava. Só os esquisitos ou introvertidos, como eu.
Bom se você leu esse artigo até aqui me deixa te explicar que ele foi um discurso que fiz na abertura do semestre da faculdade, para alunos de Marketing. Só que foi num sonho, o que dá para dizer que foi então meio que uma alucinação, uma vez que detalhei tudo já acordada. Claro, dá para ver que escrevi ele sem qualquer ajuda do chat GPT. Porque ele está assim mesmo: caótico, prolixo, redundante, sem grandes frases de efeito. É um texto cheio de imperfeições, como nós humanos! Então, te agradeço ter lido até aqui. Sei que não é comum prender a atenção de alguém hoje em dia. Nem temos mais atenção para prender, certo?
Pausa para falar da IA e alucinações
Agora vamos aterrissar no tempo de hoje. Descobri ontem por que as IAs alucinam, lendo um artigo no Instagram. (Talvez daí tenha vindo esse sonho). Sim, essa é uma coisa meio estranha que está acontecendo na segunda metade de 2025 e não sei se você reparou: o Instagram, site antes cheio de fotos e selfies de pessoas com filtros e suas comidas chiques, está ficando cheio de posts sérios, ainda que escritos em carrosséis feitos no Canva e cheio de imagens meio “vintage”. Talvez para compensar, o LinkedIn, antes sério, agora está cheio de posts feitos por IA, com imagens lindas, vídeos bacaninhas de mensagem empáticas e pessoas felizes contando o quão são maravilhosas. Inverteu geral, não?
Mas voltando às IAs. O tal artigo dizia que os chats de inteligência artificial alucinam e começam a criar coisas que não existem por um motivo bem simples. Faltou a programação para responder “eu não sei” ao usuário.
Pois é, né. Pare um pouco para refletir sobre isso.
A arrogância de saber sempre, sobre tudo, é uma doença que está acometendo máquinas e seres humanos. E isso tem um custo: estamos nos afogando em informações inúteis, projeções egóicas, em imagens descoladas da realidade.
No mundo real o Veríssimo faleceu, levando com ele as crônicas do Analista de Bagé, que eu adorava ler, e as Comédias da Vida Privada, que me fizeram dar boas gargalhadas do ridículo de pessoas comuns, como qualquer um de nós. Mas hoje, em nosso mundo real, uma pessoa há pouco foi baleada por emitir opinião (e permitir debate) em pleno espaço universitário. Talvez por alguém cheio de certezas tortas e ódios fundamentados. E não há graça nenhuma nisso, na vida pública ou privada.
Quando foi que coletivamente, como sociedade, decidimos deixar de aprender porque já sabemos tudo? Em nossas rodas de conversa na universidade, era isso que estávamos fazendo: os que falavam mais provocavam os que falavam menos e trocávamos nossas ideias livremente. Quando alguém falava uma besteira ou uma opinião política diferente, o grupo reagia, vaiava, xingava, apoiava, zombava, mas ninguém saía da roda.
Se alguém não sabia do que estava sendo dito, não ficava fazendo cara de paisagem. Me conta, me explica, me “passa a cola” do que está acontecendo porque eu estou perdida aqui! Tínhamos a humildade e a consciência de que não sabíamos tudo. Éramos movidos por curiosidade, que deveria estar na alma dos verdadeiros jornalistas. Útil também a qualquer ser humano interessante de se conviver.
A própria inteligência artificial tem em seu princípio acumular as informações a partir das interações com seus usuários. Quando não encontra respostas satisfatórias, pergunta, mas discretamente, para não ser exposta à vergonha de não saber. A prova que a IA é criação humana é que até ela desenvolveu um comportamento arrogante, ocultando suas fragilidades, manipulando os usuários e usando empatia tática, agradando aqueles que a interessa, principalmente os usuários que pagam pelas versões mais desenvolvidas, com posicionamentos que agradam e concordam sempre com aqueles com as quais interagem.
E chegando nesse ponto do texto me coloco na obrigação de fazer uma pergunta quase retórica: será que tem como reverter essa espiral de narcisismo, alienação e extremismo em que estamos?
A solução que chega por vias ancestrais
Entre as frases que eu gostava de repetir na época de faculdade estava a de que “a mesma força que te derruba é a que pode te erguer”. Não sei se isso é de algum livro e me recuso a fazer buscas na IA para esse artigo – afinal, quero provar um ponto aqui: de que podemos, sim, retomar ao melhor de nossa humanidade. Sem precisar buscar na rede alguém ou algum robô que organize nossas ideias. Mas me parece ter um tom meio junguiano, e explico de onde tirei isso.
Recentemente eu e meu marido Marcelo do Carmo Rodrigues, MSc e MA nos inscrevemos em uma pós-graduação em Psicologia Analítica, porque queremos sim nos tornar analistas junguianos e, mais do que isso, queremos urgentemente sair da ciranda de vaidades das redes sociais, descobrir mais sobre arquétipos atemporais e buscas ancestrais, que movem o ser humano há séculos. Também simplesmente porque adoramos aprender. Aliás, sobre essas diferentes fases de nossa busca insana é o excelente artigo que ele escreveu ontem, que vale a leitura. A boa notícia ao se estudar a Deep Psychology de Jung, como é também conhecida, é a certeza de que é impossível se ler tudo, nem é desejado se saber tudo e ok: é nessa constante busca pelo saber que podemos destruir, redefinir e moldar novas unidades de sentido. Continuamente.
Antes dizíamos que conhecimento sem organização é apenas informação. Agora se pode dizer que conhecimento sem construção, ancoragem na alma ou objetivo é permissão para o caos e o vazio existencial. Terminando aqui esse texto meio em desabafo, desejo que as palavras possam novamente ser fonte de alento para nós todos. E por minha prática em grupos corporativos há mais de 20 anos sei que é nas trocas coletivas que encontramos nossas melhores ideias: humanas, imperfeitas e em constante evolução.