A herança da maternidade invisível

Joana tem um filho de 1 ano e 4 meses e se sente muito pouco produtiva ultimamente. Acredita que a maternidade lhe deixou mais atrapalhada com as tarefas. Ela também cuida da casa e é gestora de uma equipe que atende centenas de pessoas. Bastante séria durante nossa sessão, disse que as pessoas a veem como alguém muito brava e por isso toma todo o cuidado com as palavras.
Michele chega atrasada. Disse que estava atendendo um grupo de pessoas que precisa de sua atenção, em um trabalho voluntário. Sua camiseta estava amarrotada, compondo um visual simples para alguém na sua posição de liderança. Ajeitou a câmera, se desculpou. E me contou, com carinho, que gosta de cozinhar pratos saudáveis para a filha, que está na faculdade. Ao falar de si, porém, hesita — sente culpa por se permitir descansar, enquanto há tantos com dificuldades maiores ao redor.
Ana tem dois trabalhos e chega impecável à sessão. Quando pergunto onde encontra energia para tanto, ela responde: “cresci vendo minha mãe dar conta de tudo por nós.” Ela pensa em ter filhos nos próximos anos, um desejo de seu companheiro. Mas a ideia a assusta: “mal dou conta de mim, imagina dar conta de alguém que depende totalmente da gente?”
Essas três mulheres têm outro nome, mas suas histórias são reais, ligeiramente modificadas para que não sejam identificadas. São clientes de mentoria de carreira e as sessões que temos servem para pensarmos seus momentos de vida e suas escolhas profissionais. Em comum, além de sua competência técnica e de suas entregas impecáveis, carregam algo ainda mais denso: o impacto emocional profundo da maternidade, como experiência vivida, temida, cobrada ou herdada.
Neste ano, senti um forte impulso de escrever algo sobre o Dia das Mães. Mas não queria repetir o que costuma invadir nossas redes sociais: nem o retrato publicitário da mãe perfeita sorrindo no café da manhã com seus filhos, nem o extremo oposto da mulher independente, que se basta e dá conta de tudo, grávida ou com bebê no colo, sempre plena. A verdade é que existem muitas formas de viver, ou não viver, a experiência da maternidade. Mulheres que querem ter filhos e não podem, mulheres que escolheram não ter, mulheres que já são mães e se perguntam diariamente se estão fazendo certo. Há aquelas que perderam suas mães, seja pela morte ou por distanciamentos afetivos, e outras que se sustentam emocionalmente como mães de si mesmas. O que une todas é um sentimento comum: de não estar cabendo exatamente no que se espera delas.
A maternidade, como conceito, expectativa ou realidade, ainda é um lugar cercado por cobranças. Mulheres se equilibram entre o desejo de acertar e o medo de errar, entre o cuidado com os outros e o esquecimento de si. Existe um receio permanente de decepcionar, de não dar conta, de não estar à altura. Como se houvesse um manual invisível ditando regras impossíveis de seguir. Isso vale para mães, mas também para filhas, para profissionais em ascensão, para líderes que carregam nos ombros o peso de não apenas performar, mas representar.
Herança emocional
Culpa, insegurança, ansiedade. Esses sentimentos se repetem nos grupos de mentoria que conduzo com mulheres em diferentes organizações e campos de atuação. E, invariavelmente, há um tema que conecta suas trajetórias e conflitos mais íntimos: a maternidade. Mesmo quando não é exercida diretamente, ela aparece como expectativa social, como régua de comparação, como ausência sentida, e, sobretudo, como herança emocional.
Essas emoções se manifestam de maneiras muito concretas. A culpa se disfarça de perfeccionismo, a insegurança veste o nome de “baixa ambição”, a ansiedade aparece como hiperatividade ou autocobrança extrema. Junto a isso, surgem outras dores emocionais que pouco se verbalizam: o ressentimento silencioso, a tristeza pela solidão nas decisões, o medo de ser julgada como “de menos”, ou “demais”. Muitas mulheres hesitam antes de pedir ajuda, pois foram ensinadas a serem fortes. Outras hesitam antes de se expor, porque foram ensinadas a não incomodar. Há ainda as que julgam as outras que se mostram vulneráveis, porque entendem que elas quebram algum código de protagonismo. E assim seguem, muitas vezes, em conflito interno entre o desejo de ser quem são e o receio de não corresponder ao que o mundo espera.
Na minha tese de doutorado sobre carreiras femininas, essa foi a dor mais presente: a disputa entre os diferentes papéis que uma mulher exerce na sociedade: mulher, amiga, filha, irmã, colega, chefe… e a maternidade precisa encontrar um jeito de se encaixar em tantas demandas. De um lado, a experiência da maternidade nos conecta a nossos corpos de mulheres. Por outro, ser mãe parece pouco para quem deseja encontrar seu jeito de ser e agir no mundo, que deseja uma carreira e uma profissão. E nessa gangorra de prioridades, a realidade emocional de muitas mulheres segue atravessada por dilemas que não cabem em planilhas ou reuniões de trabalho: o medo de falhar como mãe (sendo ou não sendo!), a culpa por não estar presente para a família, a pressão de ser produtiva enquanto convive com a exaustão.
Nessas últimas semanas, em meio a mais uma edição da Jornada de Íris, desenvolvida pela Conexão IE em organizações de diferentes setores, vejo esses parâmetros das carreiras das mulheres mais uma vez se desenharem com nitidez. Na jornada, a intenção é que cada integrante da turma de mulheres reflita, ao longo de nove encontros coletivos e um individual, sobre si mesma: seu percurso, suas escolhas e suas potencialidades. Nossa trajetória de encontros passa pelo autoconhecimento, pela qualidade das relações e pelo protagonismo de carreira. Em cada módulo, o tema da mãe aparece. Como modelo, como ausência, como espelho a ser quebrado ou como referência de força silenciosa.
A condição de ser mulher, em suas múltiplas formas, exige elaboração, tempo de análise. Produzir sentido a partir dessa condição é uma tarefa de vida, que é diferente a partir do momento de carreira. Para as mulheres mais jovens, o convite é o de se afastarem da armadilha de “dar conta de tudo”, e olharem com cuidado para os próprios limites, sem culpa. Para as mulheres no meio da carreira, é tempo de reavaliar prioridades e rever os pactos que fizeram consigo mesmas e com os outros: o que foi acordado ainda faz sentido? E para as mulheres mais experientes, muitas vezes acostumadas a cuidar de todos ao redor, pode ser o momento de se recolocar no centro da própria história e permitir-se ser cuidada também. Ser mulher, em qualquer geração, é uma experiência complexa, mas não precisa ser solitária. E não precisa seguir um único modelo.
Para nossas mães
Este não é um texto apenas para mulheres, porque todos nós temos mãe. A maneira como fomos cuidados, esperados ou cobrados na infância molda nossa forma de estar no mundo. Molda líderes, colegas, parceiros, filhos. O Dia das Mães pode, então, ser mais do que uma data comercial: pode ser um convite ao reconhecimento das heranças que nos habitam, e do desprendimento que precisamos ter para transformá-las.
Crescer implica escolher o que levamos adiante e o que deixamos para trás. Honrar nossas mães não é repetir seus caminhos, mas saber agradecer pelas sementes e podar os galhos que já não fazem mais sentido, que já não cabem mais na trajetória que escolhemos seguir.
Neste Dia das Mães, e em todos os outros dias do ano, que cada mulher possa encontrar um pouco mais de espaço para ser o que é, e não apenas o que esperam dela. Que possa se acolher nas suas imperfeições, reconhecer o que fez por si e pelos outros, e se permitir respirar. E que cada filho e filha, ao olhar para sua mãe ou para sua história, encontre uma chance de compreender melhor a si mesmo(a). Nenhuma relação é perfeita, mas todas podem ser fonte de aprendizado e crescimento. Há beleza nas histórias inteiras, com suas luzes e sombras. E há liberdade em poder reescrevê-las com consciência, afeto e coragem.