O Narciso no Comando

Você não percebe de imediato que está lidando com um narcisista no trabalho. É aos poucos, no excesso de controle, na manipulação velada, nos jogos de poder, que o comportamento se revela e começa a corroer relações, confiança e segurança psicológica.
Neste artigo, trago as características de nosso tempo que potencializam esse traço, os sinais desse padrão na atuação de lideranças, suas consequências para as pessoas e para as empresas, e o que pode ser feito para prevenir que o narcisismo tome conta dos times e culturas organizacionais.
O fascínio narcisista
Vivemos tempos em que a visibilidade se tornou, por si só, um capital valioso. As redes sociais, os ambientes profissionais, o uso da IA em textos corporativos internos ou nas plataformas digitais ampliaram o espaço de ação do que chamamos de gerenciamento de impressão (em inglês impression management), a tentativa de influenciar a forma como somos percebidos pelos outros. O conceito, descrito por Erving Goffman e em estudos da psicologia social, nos ajuda a entender por que tantas pessoas, no contexto organizacional, investem em associações estratégicas, conexões com figuras influentes e narrativas pessoais cuidadosamente construídas. Afinal, todos querem um pouco mais de brilho, poder e capacidade de influência, e isso chegou ao contexto corporativo.
A lógica se intensifica quando os profissionais percebem que suas oportunidades podem ser ampliadas pela simples proximidade com quem detém poder ou reconhecimento. Em outras palavras, há uma busca pelo “brilho refletido” – aquele prestígio conquistado não pelo mérito, mas pela associação. Não por acaso, já dizia Peter Drucker no início do milênio que “as pessoas tendem a se comportar como aquelas que veem ser recompensadas.”
Essa dinâmica cria uma ambiguidade típica das relações profissionais contemporâneas. Enquanto se fala em autenticidade e colaboração, cresce a pressão por manter uma imagem gerida e estrategicamente posicionada. Em tempos de incerteza, mudanças rápidas e insegurança econômica e geopolítica, essa busca por “estar bem na foto” se torna quase inevitável e é justamente aí que o narcisismo floresce.
O que é, afinal, o narcisismo?
Mais do que um traço de personalidade, o narcisismo é um padrão de comportamento marcado pela necessidade excessiva de admiração e validação, pela dificuldade de reconhecer erros e pela tendência de colocar os próprios interesses acima dos demais. Em pequenas doses, características narcisistas podem se manifestar de forma adaptativa, afinal, todos temos certa necessidade de reconhecimento e precisamos sim, especialmente em ambiente organizacional, gerenciar a forma como somos percebidos. O problema começa quando esse padrão se torna rígido e começa a comprometer as relações, corroendo a confiança, desvalorizando o outro e minando a colaboração.
No ambiente corporativo, o narcisista raramente se apresenta como alguém abertamente hostil. Ao contrário, tende a ser carismático, sedutor e estrategista, justamente para conquistar posições de influência e reforçar sua imagem. Mas, sob essa superfície, age guiado pelo desejo constante de manter o controle e de reforçar sua importância, mesmo que isso implique em manipular, omitir ou desestabilizar quem está ao redor.
O narcisista no comando não é simplesmente alguém confiante. É alguém que manipula narrativas, se apropria do trabalho dos outros, elege inimigos ou aliados e que, não raro, mina a autoestima das pessoas à sua volta. Em geral, é uma pessoa também extremamente cativante, altamente influente, que gosta de falar e de ser ouvida, e que encontra muitos palcos para atuar.
Manipulação e gaslighting
Quando conduzo rodas de mentoria e desenvolvimento de líderes, sempre tem alguém que pede: “Posso gravar aí essa parte que você fala do comportamento do narcisista? Só para enviar em meu grupo?” Dita meio em tom de brincadeira e seguida por risadas tensas do resto da turma, a frase revela o peso real que é conviver com esse perfil, seja como colega ou colaborador, e ainda mais especialmente quando a pessoa em questão ocupa uma posição de liderança. Invariavelmente as pessoas pedem uma luz, uma cura, um jeito de se adaptar à presença do narcisista. Se estamos em tom descontraído gosto de resumir “fujam para as montanhas”! Mas sei que não é algo tão simples e, a depender da situação, deixa de ser engraçado. Pode ser cruel, especialmente se você tem o azar de se tornar objeto de atenção da liderança com esse traço de comportamento.
Quando o narcisista elege um “alvo” – seja subordinado, gestor ou colega -, ele segue um roteiro bastante previsível, que tende à perda contínua de identidade de quem está sob ataque. Pelo menos foi o que mapearam especialistas na área, como as doutoras Erin Leonard e Ramani Durvasula, que trazem dicas preciosas para se lidar com narcisistas, inclusive no espaço de trabalho.
De acordo com as especialistas no tema, as estratégias de narcisismo no contexto laboral se assemelham muito a um processo de gaslighting – a manipulação contínua das relações, de forma a diminuir uma pessoa e sua rede de apoio. Nas empresas, isso assume a forma de abuso moral e pode se potencializar ainda mais quando o narcisista ocupa uma função de liderança. A seguir, faço uma releitura desse roteiro a partir de comportamentos que tenho identificado nas narrativas de mentorados executivos e alunos corporativos.
Você já foi emboscado(a) por um narcisista no trabalho?
Eis aqui alguns dos comportamentos mais comuns:
1. Ataque à autoestima e ao senso pessoal de valor
- Comentários que diminuem suas conquistas.
- Acúmulo excessivo de tarefas, sem clareza ou sequência lógica.
- Invasão das fronteiras do trabalho, como mensagens fora do expediente ou cobranças inoportunas.
- Acusações veladas de que “você não joga no time” ou “não tem empatia”.
2. Exposição pública de incompetência
- Falar sobre você para colegas ou líderes, sem que você saiba.
- Te excluir de reuniões importantes ou de decisões-chave.
- Dizer que você “se faz de vítima” ou “não entrega como deveria”.
- Apropriar-se do seu trabalho e apresentá-lo como se fosse dele.
3. Tentar tirar você da empresa
- Distorcer suas palavras e intenções para fazer as pessoas não confiarem em você.
- Minar sua autonomia, reduzindo seu poder de decisão.
- Te isolar, a ponto de você desejar sair.
- Criar condições para que você seja demitido(a).
Esses são comportamentos concretos que, justamente por serem observáveis, revelam a ausência de competências socioemocionais. Fica evidente: não há escuta, não há abertura para perspectivas diversas, não há busca de conciliação, nem qualquer forma de autocontrole ou regulação social. Não há inspiração, nem orientação. Ao contrário, há a liberação de instintos predatórios em todo o time e a proliferação de ambientes tóxicos, onde imperam o medo, a angústia, a culpa, a inveja e a mentira. Um ciclo de gaslighting que, muitas vezes, só é percebido quando os danos já foram causados.
A presença do narcisismo em líderes é altamente destrutiva para a cultura organizacional e para a organização como um todo. A curto prazo, e em indivíduos específicos, os “bodes expiatórios”, o narcisismo produz tentativas sistemáticas de desestabilização e manipulação que leva essas pessoas ao adoecimento ou à saída da empresa. No médio prazo, os danos seguem ocorrendo nos times, comprometendo relações de confiança, ampliando intrigas entre lideranças e potencializando comportamentos truculentos e antiéticos que, inevitavelmente, acabam por prejudicar os resultados do negócio.
Como lidar com chefes narcisistas?
Não existem soluções simples. Lidar com o narcisismo exige conhecimento especializado sobre comportamento humano, gestão de pessoas e a dinâmica dos relacionamentos no trabalho. O pesquisador e psicanalista Kets de Vries aponta que, embora um certo grau de narcisismo saudável seja natural e até necessário, para quem ocupa posições de liderança, o narcisismo patológico é um fator de alto risco para as relações e para as organizações. A partir de seus estudos e da minha experiência como mentora de líderes, trago aqui algumas posturas fundamentais de enfrentamento saudável (coping) em um contexto de manipulação emocional ou emboscada do narcisista:
- Não confronte diretamente. O líder narcisista tende a reagir com hostilidade e manipulação quando se sente desafiado. Na maioria das vezes, manter distância é a estratégia mais segura.
- Estabeleça limites claros e objetivos. Defina fronteiras profissionais com naturalidade e sem justificativas excessivas. Limites bem sustentados se impõem pelo exemplo.
- Documente interações e acordos. Registre os fatos de forma objetiva e cordial. Evite longas explicações ou áudios, a clareza escrita é sua aliada.
- Construa uma rede de apoio. O isolamento é uma das táticas mais recorrentes do narcisista. Colegas, líderes e mentores confiáveis ajudam a validar percepções e a traçar estratégias.
- Invista na sua autonomia e desenvolvimento. Em vez de buscar aprovação, fortaleça sua trajetória e mantenha o foco no seu crescimento profissional, sem precisar expor seus planos.
- Se necessário, planeje uma transição. Se os limites forem ultrapassados e sua saúde emocional comprometida, considere uma mudança de função, de projeto ou, se preciso, de organização.
No campo organizacional, é essencial criar freios culturais e institucionais para limitar o poder destrutivo de líderes narcisistas. Ferramentas como o feedback 360° e avaliações estruturadas, como o ESCI – Emotional and Social Competence Inventory – que temos orgulho de oferecer pela Conexão IE, ajudam a tornar visíveis os comportamentos que muitas vezes passam despercebidos ou são normalizados.
Além disso, o desenvolvimento das competências socioemocionais tem um papel crucial. Ele amplia o vocabulário das equipes, fortalece a percepção coletiva e cria um ambiente onde relações saudáveis e transparentes possam prosperar, impedindo que práticas tóxicas se enraízem. Como bem tratado no artigo da Briefings Magazine, líderes não podem se esconder quando os tempos ficam difíceis. É justamente nessas horas que a presença genuína, o diálogo aberto e a consistência ética se tornam indispensáveis. Se a liderança se ausenta, abre-se espaço para o poder disfuncional e para a manipulação emocional.
Por isso, promover a educação socioemocional não é apenas uma escolha, mas uma necessidade urgente em tempos de crise, incerteza e caos institucional. Seja em processos de desenvolvimento, seja na rotina diária, seguir nessa jornada é um caminho para construir ambientes mais íntegros, humanos e sustentáveis, onde os verdadeiros líderes possam florescer.
Quer seguir nessa jornada?
Para apoiar o desenvolvimento de líderes e equipes, criamos a Academia IE, um espaço de aprendizado contínuo em competências socioemocionais, relações saudáveis e liderança consciente. Vale a pena conhecer os cursos e conteúdos já disponíveis! Em ambientes desafiadores, toda prática de pensamento reflexivo faz a diferença.