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Efeito Shingen – a sombra no processo decisório

Por muitos anos atuei como examinador sênior e instrutor no Prêmio Nacional da Qualidade. Entre os muitos aprendizados desse período, um deles virava piada interna entre mim e a Alessandra Gonzaga, Ph.D.: nos Critérios de Excelência, os líderes não eram exatamente tratados como pessoas.

Brincadeiras à parte, havia uma razão para isso. O Critério Liderança abria o caderno da excelência com foco em compreender como as grandes decisões da organização eram tomadas e de que forma as lideranças, e posteriormente todo o sistema de governança, participavam desse movimento. Já no Critério de Gestão de Pessoas, o líder surgia como responsável pelo engajamento, motivação, clima, bem-estar e produtividade. O PNQ percorria, assim, todo o pipeline de liderança: do executivo responsável pela direção estratégica ao gestor que precisa fazer tudo acontecer.

O que me chama atenção, desde aquela época, é que entre esses dois extremos geralmente há muito pouco espaço para olhar para o líder como um ser humano que pensa, sente e decide. Nessa reflexão do artigo pretendo fazer paralelos com a psicologia analítica, enquanto me preparo para atuar como analista junguiano no setting organizacional.

A metáfora do Kagemusha

Ao longo dos anos, as expectativas sobre quem lidera só aumentaram: crises econômicas, rotatividade, implantação de ERPs, automação crescente, reestruturações, pandemia, trabalho híbrido e agora o desafio de integrar inteligências artificiais às rotinas das equipes.

Liderar tornou-se um malabarismo permanente, no qual cada novo desafio exige habilidades adicionais e, ainda assim, a discussão sobre como o líder pensa e decide segue ficando em segundo plano. As organizações seguem pedindo novas entregas sem revisar o modo de pensar que sustenta essas entregas. E é justamente aí que reside o maior risco.

Quando adolescente, assisti pela primeira vez ao filme Kagemusha – A Sombra de um Samurai, de Akira Kurosawa, exibido ainda na antiga TV Manchete. Sempre trago essa história nos círculos de liderança. O enredo do filme é o seguinte…

No Japão do século XVI, um poderoso clã era liderado por Shingen Takeda, um estrategista temido cuja simples presença inspirava respeito nos aliados e hesitação nos inimigos. Quando Shingen é mortalmente ferido, sua morte precisa ser mantida em segredo, e um prisioneiro, extremamente parecido fisicamente com ele, é treinado para assumir seu papel.

O kagemusha, a “sombra”, aprende a montar a cavalo como o líder, participa de cerimônias, engana espiões e, aos poucos, passa a acreditar no próprio papel. Contudo, há um limite para qualquer sombra: ela só consegue sustentar a aparência. E a aparência não é suficiente quando o mundo muda.

Ao longo do filme, o clã tenta preservar a figura de Shingen como se nada tivesse acontecido, mas o inimigo já opera em outra lógica. Na batalha final, os Takeda ainda confiam em cavalarias e lanças, enquanto os rivais adotam armas de fogo.

A estratégia que um dia foi brilhante torna-se, de repente, insuficiente. Nenhum esforço para manter a continuidade simbólica compensaria a incapacidade de atualizar a forma de pensar a guerra. A lição é brutal: não basta manter a aparência da liderança; é preciso evoluir a cabeça da liderança.

O Efeito Shingen

Quando o kagemusha assume o lugar de Shingen, algo muito profundo acontece: não é só um homem que ocupa o trono, mas a Sombra do líder que toma o lugar da liderança real.

Na psicologia analítica, a Sombra é tudo aquilo que fica escondido, reprimido ou não reconhecido na consciência. É o conjunto de aspectos latentes, negados ou não integrados do psiquismo. No filme, quando o impostor ocupa o papel de Shingen, o clã inteiro passa a viver sob um efeito sombra coletivo: eles preservam a aparência de continuidade, evitam questionar o que está diferente, seguem gestos, símbolos e rituais antigos e deixam de investigar o que precisa ser revisto.

Enquanto a Sombra reina, acontece exatamente o que Jung descreve:

Tudo aquilo que não é integrado à consciência retorna de forma distorcida e perigosa.

O clã Takeda não revisa premissas, não atualiza modelos mentais, não questiona tradições, não adapta estratégias, não encara as tensões internas e continua lutando a guerra anterior enquanto o mundo já mudou. Ou seja:

Um clã comandado pela Sombra é incapaz de tomar decisões vivas. Decide sempre como antigamente até quebrar.

E foi exatamente isso que aconteceu: o clã Takeda foi derrotado não porque faltou coragem, mas porque a Sombra impediu a atualização da consciência estratégica.

Entre métodos e pessoas

Passei boa parte da vida profissional observando métodos de planejamento estratégico surgirem, ganharem prestígio, serem aplicados, abandonados e substituídos por novos métodos que prometem ser mais ágeis, mais integrados ou mais modernos.

Balanced Scorecard, OKRs, Canvas, Análise SWOT, frameworks de planejamento e execução, diagnósticos diversos: nenhum deles é inútil, todos carregam valor. Mas há um ponto cego que raramente é enfrentado: método não muda modelo mental. Método não muda o modo de pensar do decisor.

Podemos reorganizar departamentos, redesenhar fluxos, alterar indicadores, introduzir novas tecnologias. Mas, se o padrão decisório permanece o mesmo, as respostas estratégicas continuam iguais até que o cenário torne isso insustentável.

O ponto de inflexão

Organizações falam sobre inovação, transformação e futuro, mas continuam tomando decisões como se ainda permanecessem no cenário anterior, presos à sombra de modelos de gestão herdados de antigos fundadores ou de líderes que foram brilhantes no passado, mas cujas lentes não foram revisitadas. Pior: estou vendo um movimento que tenta terceirizar a tomada de decisão para as IAs.

O risco é evidente: sustentar estratégias com lógica ultrapassada, tomar decisões baseadas em pressupostos que já não se verificam, reforçar vieses não examinados, confiar mais na familiaridade do que na realidade. O problema não está na estratégia. Está na consciência que a antecede.

É por isso que acredito na importância de discutir como pensamos antes de discutir como decidimos. Ferramentas e processos são úteis e necessários, mas decisões consistentes e responsáveis só acontecem quando líderes conseguem enxergar cenários com clareza, revisar seus pressupostos, dialogar com perspectivas divergentes, reconhecer impactos emocionais e vieses e adaptar sua forma de pensar ao que o contexto realmente pede.

Esse é o espaço onde tenho atuado nos últimos anos e que agora marca uma nova etapa na minha jornada. Não para defender um método específico, mas para reconhecer e fortalecer a ambidestria das decisões, que precisam ser humanas e racionais, de forma a construir o futuro das organizações. Afinal, nenhuma organização se mantém relevante quando as mentes que a dirigem permanecem presas às sombras do passado.